26.9.16

três coisas

da linha ténue que está a separar o Verão do Outono:

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1. As videiras estão pesadas, cheias, carregadas.
Ouvem-se as dornas. As cheias, as meio cheias e as vazias. Batem umas contra as outras e ouvem-se. A pouco e pouco aliviam as vinhas, mas nunca as esvaziam. As vinhas são sempre cheias.

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2. A luz de fim do dia está a mudar. As minhas sandálias amarelas, sabem disso. Sabem que à medida que a luz muda, a importância de uns pés calçados de amarelo também se esbate.
Mas atenção, nunca desvalorizo a importância de dar amarelo aos pés.

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3. Há livros que se fazem de linhas ténues e como tal devem ser lidos com a luz de uma linha ténue.
No início da tarde de sábado, olhámo-nos com uma satisfação tímida quando soubemos que o piano estava pronto. A meio da manhã, o meu tio saiu para ir buscar o afinador. Chegou, trazendo-o pelo braço. O afinador era cego. Apontava a cabeça para cima ou para lugares onde não acontecia nada. A cabeça girava-lhe autónoma sobre o pescoço. Era mais velho do que o meu tio. Tinhas as mãos lisas. Falava pouco. Passámos horas a acertar notas em cada tecla. O afinador apertava as cordas com uma chave de prata que segurava, firme e cuidadosamente, entre os dedos. E os sons puros: nítidos no silêncio: desenhados no ar, a demorarem-se breves, a ecoarem na memória e a deixarem outro silêncio: outro silêncio: outro silêncio diferente. 
Quando por fim se ouviu uma palavra, foi o meu tio que me pediu para ir avisar o italiano. Sorri-lhe, abanei a cabeça afirmativamente e não fui capaz de dizer nada porque, dentro de mim, tinha um redemoinho infinito de música infinita.
Cemitério de Pianos, José Luís Peixoto

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